O empoderamento do servidor público e o silêncio do Poder Hierárquico

por: Marco Antonio da Silva Pinto

Cala boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”

Esse enunciado, há anos proferido por crianças de maneira sucessiva, reflete a “pureza”, ligada à falta de responsabilidade civil desse ser impúbere. Há muito, esta pureza pode ser facilmente reconhecida, sendo a sua importância já destacada desde os tempos bíblicos, como se vê em Mateus 18:3: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no Reino dos céus”. Já no que concerne à responsabilização civil do menor, é sabido que a mesma torna-se, a priori, afastada pelo seu caráter subsidiário, conforme disposição legal, vide art. 928 caput c/c art. 932, I e II, do Código Civil/02.

De modo que, o somatório da dita pureza aliada à proteção jurídica contribui de maneira significativa para uma pseudoautonomia absoluta, que nos embates infantis encontra guarida social, sendo externada, por vezes, pela referida expressão: “Cala boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”, que tomou relevo quando do voto da Iminente Ministra Cármen Lúcia do STF (ADI 4815), cujo núcleo da ação discutia a mitigação do direito à liberdade de expressão, constitucionalmente previsto no art. 5º, IV, VIII, IX c/c art. 220 §2º. Entretanto, é flagrante que tal menção, à época, foi utilizada conotativamente, como representação de uma tentativa de censura mediante a necessidade de autorização prévia para publicação de biografias.

No entanto, essa expressão tem sido utilizada na seara do Direito Administrativo, prioritariamente por servidores públicos que, apoderando-se da referida construção juvenil, tentam expurgar o Poder Hierárquico da Administração Pública.

Em relação a principiologia aplicada ao Direito Administrativo verifica-se que esse Poder adstrito à Administração Pública, precipuamente ao Poder Executivo, se faz necessário para manutenção da sua integridade moral (objetiva), e cumprimento dos seguintes objetivos: ordenação, coordenação, controle e correção das atividades administrativas, cuja finalidade mister é o alcance e a garantia do cumprimento dos Princípios Constitucionais da Legalidade e Eficiência (art. 37, caput da CRFB/88).

Ocorre que, a estabilidade do servidor público, prevista no art. 41 da Constituição Federal, com as devidas ressalvas, cumpre o papel fundamental de permitir que o mesmo atue no desempenho de suas funções sem sofrer, prima facie, intervenções políticas. Contudo, o outro lado dessa moeda protetiva avança em conjunto com a atual crise moral e ética da sociedade, culminando no tal empoderamento do servidor público, que inclusive, por vezes, se sobrepõe ao Poder Hierárquico garantidor do Princípio da Autotutela Administrativa.

Insta observar que a suposta autonomia absoluta, assim intitulada pelo servidor público, se faz presente no momento em que este, por interesse particular ou de terceiros, deixa de cumprir seus deveres, elencados no art. 116 da Lei 8112/90, ou de resguardar-se de suas proibições, previstas no art. 117 da desta mesma lei. Sendo certo que, ao violar a sua lei regulamentadora (Lei 8112/90, no caso de um servidor público federal), este torna-se sensível às imputações na seara administrativa, civil, e penal de forma independente.

Ainda nesse sentido, deve-se destacar que as hipóteses de perda do cargo (art. 41, §1º, incisos, da Constituição Federal), do ponto de vista prático-vulgar, depende da conduta ativa do superior hierárquico, ressalvada a hipótese da via judicial, uma vez que a possibilidade de demissão do servidor, mediante avaliação de desempenho, encontra-se com sua eficácia mitigada na maioria dos órgãos públicos, em decorrência da omissão legislativa regulamentadora da Emenda Constitucional 19/98.

Nessa senda, destaca-se o papel do superior hierárquico como longa manus da própria Administração Pública, e o único do ponto de vista prático que pode e deve “calar a boca” do importunado servidor público, como se nota pelo princípio da presentação, no regular exercício do poder-dever de garantir o alcance dos princípios lastreados no art. 37, caput da CRFB/88. Deste modo, a conduta permissiva da autoridade hierárquica, no exercício do ius puniendi, em face da conduta legalmente afrontosa por parte do servidor público, ganha magnitude social e jurídica, uma vez que o legislador fez questão de tipificá-la como crime. A referida omissão do superior hierárquico amolda-se ao tipo penal previsto no art. 320 do Código Penal (CP), podendo inclusive responder por processo administrativo disciplinar (PAD), com a possibilidade de posterior demissão, conforme dispõe o art. 132, inciso I, da Lei 8112/90, uma vez tratar-se de crime contra a Administração Pública (capítulo I do Código Penal).

Art. 320 – Deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente: Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.

Diante do exposto, torna-se necessária a análise da definição do termo servidor público de que trata esse artigo. Embora o objetivo maior deste trabalho tenha sido o servidor público, sendo este o titular de cargo efetivo, insta sublinhar que, em relação à responsabilidade penal, o próprio Codex Criminal adotou um conceito alargado para qualificar o agente dos delitos previstos entre os artigos 312 e 326 do Código Penal. Esse determinante trazido pelo Código Penal, embora ainda pautado no remoto conceito de funcionário público, direciona para uma mens legis cuja preocupação maior é a salvaguarda dos princípios basilares da Administração Pública.

Sendo assim, o conhecimento extraído da interpretação literal e teleológica do art. 327, caput do CP permite a inferência de que a omissão punitiva ou investigativa da autoridade hierárquica, em face de funcionário público que tenha praticado atos atentatórios à Administração Pública, é condição autorizadora para que lhe seja imputado o crime de condescendência criminosa, art. 320 do CP, ainda que o referido funcionário não seja servidor público estável.

Nesse sentido, convém exemplificar um caso concreto em que um médico cirurgião, no exercício legal da medicina, mas na qualidade de residente em um dado serviço médico-hospitalar de caráter público, deixa de observar os critérios técnicos para prevenção de infecção no centro cirúrgico. Diante dessa conduta negligente, cabe ao médico supervisor (art. 1º da Lei 6932/81), diretamente envolvido no procedimento, tomar as providências cabíveis de acordo com o juízo de reprovabilidade, mas balizado por consectário lógico, pelo princípio da razoabilidade/proporcionalidade.

No caso supracitado, na medida em que o médico supervisor torna-se omisso, sendo, portanto, permissivo a tal prática violadora da normatização da Administração Pública ou mesmo caracterizada como crime, ainda que de risco (conceito jurídico doutrinário), estará este superior hierárquico praticando o tipo penal previsto no art. 320 do Código Penal. Convém destacar que, na hipótese deste superior hierárquico ocupar função de direção ou assessoramento de órgão da administração, responderá pelo crime com causa especial de aumento de pena (em um terço).

Na análise do crime de condescendência criminosa, muito embora torne-se evidente o apenamento em caráter reduzido, cujo preceito secundário define a pena máxima em um mês e regime de detenção apenas, não deve ser afastada, na hipótese de denúncia por tal crime, a possibilidade da persecutio criminis indicar uma imputação sobrelevada, em virtude do caráter delitivo reiterado por parte do superior hierárquico, aplicando-se no caso concreto a discussão sobre concurso material de crimes (art. 69 do Código Penal) versus crime continuado (art. 71 do CP).

Por fim, torna-se necessário avaliar os efeitos da conduta ofensiva por parte do funcionário público (citando a definição pretérita do Código Penal), atual servidor público, em face da Administração Pública. Em referência ao título desta obra, sustenta-se que o servidor público, transvestido da face obscura da autonomia do cargo, que pratica atos incompatíveis com os Princípios da Administração Pública (art. 37, caput da Constituição Federal), ou contrários ao exercício regular de suas atribuições (art. 127 da Lei 8112/90) deve responder proporcionalmente (n/f do art. 127 da Lei 8112/90).

No caso de responsabilização de servidor público federal, por certo que a mesma decorre de prévio processo administrativo disciplinar (art. 143 da Lei 8112/90), sendo resguardados o contraditório e a ampla defesa desde a fase de inquérito (art. 153 da Lei 8112/90). Nesse ambiente, cumpre destacar mais uma vez o papel imediato do superior hierárquico direto, que tendo ciência da irregularidade deve encaminhar o fato a autoridade competente para realizar a apuração imediata, conforme dispõe o art. 143, caput e §3º da Lei 8112/90. In casu, tratando-se de servidor público federal, da sindicância para apuração tem-se os seguintes efeitos: arquivamento do procedimento, aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 dias, ou instauração de processo disciplinar (in verbis: art. 145 da Lei 8112/90).

Hodiernamente, não haveria motivos para que o servidor público injetasse no seu ego uma possível autonomia absoluta, transpondo a barreira dos Princípios da Administração Pública, sem suportar o ônus dessa prática, precipuamente na hipótese de ofensa direta ao interesse público. Como pode-se notar os mecanismos jurídicos para a imputação à título de penalidade administrativa existem, seja sob a ótica material e/ou processual. Portanto, nesta senda, surge o papel do superior hierárquico, como longa manus da Administração Pública, em cujo mister “pode deixar de ser a mão que cala”, e “tornar-se silenciado pelo Direito Penal”.

Complemente seus conhecimentos com o vídeo do Superior Tribunal de Justiça:

Publicado em: 28 de abril de 2019 por

© 2024 - Marco Antonio da Silva Pinto / Marcio Silva